domingo, 23 de março de 2014

VPV

aprecio-lhe a verve, elegante até a mandar à merda tudo e todos, o enciclopédico saber, arrogante, mas quem sabe como ele sabe acerca do Liberalismo e dos tempos da I República tem o direito de chapá-lo, nem que às vezes a trouxe-mouxe quando fala doutra coisa qualquer. nas suas elucubrações acerca dos "nossos dias" não se atém ao dito comum mui sapiente, lido e ouvido mil vezes: ousa. ousa errar sem medos, com a altivez suicida de quem não deve nada a ninguém e, mais, acredita piamente ser o indivíduo mais inteligente no seu prédio. na sua freguesia. em resumo, não é hipócrita. assume-se. mal ou bem assume-se. e - qualidade que nunca é demais evidenciar - ele e o abjecto politicamente correcto nem sequer são vizinhos. eu gosto disso. gosto dele. não me influencia: dá-me prazer. escreve bem de bem, ninguém lhe desconhece as famílias políticas ou sociais, ou ele as esconde, mas as suas leituras e análises são transversais, batem forte e feio em tudo que mexe. (dizer bem é mais difícil, se não impossível; mas isso já sabemos, e o seu mau-feitio até tem piada.)
isto tudo para dizer mais uma coisa: irritam-me os que recusam lê-lo por razões de hino e bandeira. de cor política. por palas de burrice, a tal cegueira ideológica. os que quando se olham ajeitam a farda, e só sabem marchar, marchar, marchar. talvez uma forma de vencerem o medo do apeio à ignorância que fica no fundo do copo quando se espreme um fruto já espremido e ralado pela História. e enchiam-se (bela metáfora) lendo-o. talvez lhes entrasse que afinal isto não é tudo ou preto ou branco.
por bom exemplo a sua crónica de ontem  no Público:
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A sociedade de mercado
"Já leu o livro “O que o dinheiro não pode comprar” (não sei se está traduzido em português)?
Se não leu, leia. O livro é de Michael J. Sandel, professor de Harvard e, segundo dizem, “o maior filósofo vivo”. A tese de Sandel é simples e coincide com o espírito do tempo: há valores que o mercado diminui ou perverte. Comecemos pelo caso mais simples. Se alguém compra um amigo, não fica em última análise com um amigo, porque a amizade não pode ser objecto de compra. Se alguém resolve seduzir um homem ou mulher com modelos de cartas que tirou da internet (de resto, uma velha invenção), falhará no momento em que a burla se tornar pública. E o mesmo se aplica aos pais que “compram” os filhos com condescendência e com dinheiro; ou com os políticos que pedem votos com promessas falsas. O mercado deturpa ou anula a intenção e faz com que ela falhe.
Outros casos menos nítidos. Saltar a “bicha” ou a fila, como hoje se diz, comprando bilhetes mais caros na candonga ou alugando à hora quem espere em lugar do próprio, enfraquece essencialmente o civismo de uma sociedade. O gosto por um cantor, imaginemos por Tony Carreira, não se deve medir pelos rendimentos de cada um. E o que não admira que se passe com Tony Carreira ou, por exemplo, com um jogo do Benfica, acaba por se tornar dramático se um dia se alargar às listas de espera da medicina privada ou da grande advocacia. Pior ainda: nada impede o incentivo, tão caro aos teóricos do mercado, de se introduzir em áreas até hoje intocáveis. Pagar a um adolescente 5 euros por livro que lê, não prejudica para toda a vida o prazer da leitura? Ou pagar a uma mulher para ter ou não ter filhos? Ou adquirir ao Estado, através da corrupção, privilégios que ninguém legalmente consegue?
Estes mercados, na verdade negros, talvez sejam eficientes no sentido económico da palavra, mas pouco a pouco eliminam qualquer senso moral no cidadão comum. Vender o nome não é melhor. Um benfiquista gostava que o Estádio da Luz se começasse a chamar Estádio da PT? Um lisboeta gostaria que a estação de metro do Chiado recebesse o nome de Samsung? E um portista que a Torre dos Clérigos se tornasse na Torre Volkswagen? E Portugal inteiro não se importaria se o governo começasse a vender o nome de escolas, monumentos, praças, ruas, mesmo uma cidade ou outra a marcas comerciais, como sucede na América? Sangel não é com certeza “o maior filósofo vivo”. Mas descreve a sociedade de mercado que se aproxima e que é, essa sim, um perfeito inferno."

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